quinta-feira

- Eu não quero te magoar.
E eu fiquei olhando sua barba mal-amanhada, suas sobrancelhas desorganizadas e seu belo par de olhos fundos, enquanto pensava "é sério que 'cê tá me dizendo isso?!"
Não sei quantos anos cozinhando meu discurso libertário, minha autonomia emocional, minha responsabilidade pelas minhas dores e alegrias, para, de repente, aparecer um machinho mequetrefe dizendo "eu não quero te magoar"...

e u n ã o q u e r o t e m a g o a r

Não interrompi o seu discurso chato, repetitivo, mais do mesmo, de que-eu-já-sofri-muito-e-não-quero-mais-me-envolver. Deixei ele falando suas filosofias sobre o amor, acreditando que estava me ensinando muitas coisas sobre a vida. 
Por que eu não falei pra ele calar a boca?!
Por que não emiti um simples "me magoar de cu é rola!" ?
Eu fiquei completamente muda, deixando ele monologar enquanto ia sentindo os meus olhos marejando.
Porque, sim, ele estava me magoando.

Quando o conheci, coisa de dois meses antes, eu desfilava bonita, sexy, livre, leve e fagueira pelas ruas da cidade. Com todos os antigos amores paixões e paixonites zerados, dormindo nas caixas bonitas das minhas experiências intensamente bem vividas. Eu estava naqueles raros momentos de perfeita sintonia entre corpo, cabeça e coração. Não por acaso ele puxou uma cadeira e perguntou se eu tinha uns vinte minutos pra uma boa prosa.

Pedro era massa.
Papo fluido, senso crítico, sarcasmo, sorrisão, gostava de boteco sujo e não se incomodava com aqueles restaurantes da moda onde todas as pessoas são iguais, amigo da ex mulher, um pai com todos os atributos de uma boa mãe, carinhoso, divertido, cheiro bom e, pelo amor da Pombagira, como trepava gostoso! 
Então, em nome de Jesus, alguém me dê pelo menos um motivo pra eu não me apaixonar!

E esse é o tipo de coisa que escapa dos olhos, não é mesmo? Era palpável o meu encantamento. 

Pedro foi dando pra trás. Tirou um chamego daqui, uma disponibilidade dali, acrescentou uns silêncios acolá. Saquei, que eu não sou menina, mas continuei pagando pra ver. Até que ele me deu como prova um desleixo, um desdém e uma frieza, tudo no mesmo pacote. Me convenci, e já estava pegando o meu cavalo gripado e tirando ele da chuva, quando teimei em dar ouvido pro demônio do benefício da dúvida. Eu podia muito bem ter desaparecido da face da Terra sem falar nada, mas resolvi pegar minha linda, macia e bem cuidada cara e botar ela pra bater. "O que é que 'tá acontecendo?" - perguntei. Foi quando aquele "eu não quero te magoar" estalou estridente bem no meio da minha bochecha.

Nunca parei pra contar quantos homens não quiseram se encaixar nos desenhos que projetei pra eles na minha vida. Assim como nunca me foi importante contabilizar quantas vezes recusei convites pra uma contradança. Eu sempre entendi que isso faz parte da vida. Pronto. A gente lamenta um pouquinho, porque frustração e rejeição nunca são coisas fácies de digerir, mas nada que um chá de camomila e um lápis de olho não resolvam. Às vezes com mais ou menos drama, mas se há uma verdade sobre a vida, é que dor de desejo mal correspondido, passa - sempre.

Quantas vezes cada pessoa deste mundo teve que administrar uma recíproca não verdadeira dentro de si? Algumas pessoas bem poucas vezes, que seja, mas existe coisa mais humana do que projeções de desejos que não se encaixam um no outro? Tanto, que quando se encaixa, é uma festa!
Então não, ninguém tem o direito de achar que quereres desencontrados são a mesma coisa de uma pessoa ferir outra deliberadamente.

Você não tem esse poder, Pedro, você não pode me ferir. 
Eu te quero e você não me quer. Onde a palavra mágoa participa dessa história? Deixe de ser arrogante!

Foi isso o que eu pensei na hora.
Mas permaneci calada.

Quando Pedro me disse "eu não quero te magoar", ele me classificou como alguém que pode se desmanchar por uma coisa tão corriqueira. Quando Pedro me disse "eu não quero te magoar", ele me disse que eu não tinha capacidade de manejar os meus desejos e as minhas expectativas. Quando Pedro me disse "eu não quero te magoar", ele tirou de mim a minha responsabilidade sobre a minha vida.
Pedro quebrou a minha coluna.
E isto sim, me magoou profundamente.

Quando ele terminou de falar, eu só consegui balbuciar "entendi", lhe ofereci o meu melhor sorriso amarelo, peguei minha bolsa e me despedi.

Eu poderia, naquela noite, ter dito todas estas coisas para Pedro. E eu estou certa que ele ouviria com atenção e que, talvez, contra argumentaria. E não que fosse mudar alguma coisa, mas eu teria dito o que sou e o que acredito. E Pedro automaticamente ganharia a sua caixa bonita nas minhas memórias, ao invés de ter virado um fantasma feio, que insistia em me incomodar.
Eu poderia, naquela noite, ter dito todas estas coisas para Pedro.
Se eu as tivesse percebido na hora, e não só agora, três anos depois.

É por isto, Pedro, que no terreno dos desejos não correspondidos, a gente não deve trabalhar sob os termos da mágoa. Porque fantasmas, sim, é que são coisas bem difíceis de se livrar.

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