sábado

Sabe... de todas as coisas que eu tenho direito, a que eu tenho mais direito, é de continuar moldando a minha vida com as minhas próprias mãos. Ok, eu não sou a ceramista mais competente. Eu não faço os modelos mais bonitos. Não construo os traços mais harmônicos. Minhas peças são disformes, assimétricas, são quase dadaístas. Mas é a merda da minha vida. E eu gosto dela. E, sinto muito, mas não posso deixar que qualquer outra coisa, além de mim mesma, modele ela. Nem em Deus eu acredito.
Eu não sei por que, mas quase morri um tanto de vezes no meu primeiro ano de vida. Eu passei os primeiros três anos dela enfiada em hospitais. Aos onze anos eu já havia feito três cirurgias com anestesia geral. Cheiro de éter é um dos aromas que eu melhor identifico.
Eu não sei por que, mas eu superei essa droga toda!
Eu coloquei a meu favor todas os dramas. Eu não me debrucei sobre eles e fiquei sentindo pena de mim mesma.
Eu não tive pai, meu avô morreu quando eu era criança demais para, emocionalmente, ter que me virar sozinha, minha mãe é financeiramente auto-destrutiva, eu fui uma criança freak, eu passei a adolescência inteira convencendo a mim mesma que eu podia ser desejável e atraente mesmo tendo uma deficiência física, eu brigo até hoje com um contraproducente complexo de rejeição, eu sou preguiçosa e insegura.
Ok, meus problemas são fichinha perto dos de muitas outras pessoas.
Mas são os meus problemas.
São os problemas que eu sei lidar.
E, sim, eu espero ter a sabedoria de ir me desapegando deles.

Mas eu me adaptei.
Eu tive que aceitar e me adaptar às coisas que eram maiores que a minha escolha consciente.
Porque o que me interessava era estar viva e aproveitar estas coisas daqui.
Eu gosto da minha vida.
Eu me divirto com os meus dramas.
Eu me alimento deles.
E daí?

Eles são a matéria-prima da minha dramaturgia.
MINHA.
Mas nada, nada mesmo, tem o direito de se meter no que eu já construí.
Nada vai chegar como uma bomba e determinar o que eu devo fazer a partir daqui.

O tabuleiro é meu. As peças são minhas. Sou eu, e mais nada, e mais ninguém, que determina como deve ser jogado esta droga deste jogo!

Eu sou daquelas que se responsabilizam pelas besteiras que fazem. Eu aguento a pena. Eu acredito nela para me redimir. Eu não fujo da dor quando sei que fiz algo que não deveria.
Mas eu não tenho nada a ver com o fato da consciência coletiva achar que o sexo é uma coisa suja, que as mulheres deveriam negar a sua libido, e que qualquer pessoa que lida com naturalidade com isto, deveria ser punida.

Eu não admito, nem por um segundo, pegar o resultado do teste HIV que fiz há quase vinte dias atrás, e ver que deu positivo.
Eu não vou ter uma doença incurável e estigmatizada.
Não vou. Simplesmente não vou!

Eu me expus mais do que todas as mulheres heterossexuais com relações estáveis, grupo onde o número de soropositivos vem crescendo assustadoramente. Eu fui tão burra quanto elas. Fui tão mulherzinha quanto elas. Fui tão fraca quanto elas. Mas eu, definitivamente, me expus muito mais do que elas. Porque quando a assistente social perguntou com quantas pessoas eu havia tido relações sexuais de um ano pra cá, eu tive que parar, pensar e contar nos dedos.
Eu não posso ser punida por transar com desconhecidos.
Porque eu acredito, tirando o fato de que algum deles poderia ser um psicopata, eu acredito que sexo seja apenas sexo. É um pedido que o corpo faz. E na minha cabeça não adaptada às regras desta sociedade, não vejo sentido em negar ou condicionar este pedido.
Eu fui para cama com todas as pessoas que eu quis e me quiseram também.
Algumas delas eu nem queria tanto assim, se quer mesmo saber...

Eu apenas acho uma grande sacanagem que uma coisa tão natural tenha sido atrelada à uma doença terrível. E é aqui que eu me torno metafísica o suficiente para acreditar que nós, seres humanos, seres especialistas em auto-mutilações, "criamos" a AIDS porque a coisa que fazemos melhor é inventar motivos para sermos infelizes.
Veja só, não existe um Deus.
Existem expressões.
Algumas coletivas.
A AIDS é uma delas.

Eu não transei com todos os homens com quem transei sem camisinha.
Parando para contabilizar, vejo que, na verdade, fiz isso com a minoria.
Mas é uma minoria suficiente para ter me infectado.

Eu saí da sala da assistente social, indo para a outra onde iam tirar meu sangue, tendo a certeza que eu era soropositiva.
Eu passei estes dias todos lendo tudo o que eu podia a respeito do assunto.
E eu aprendi detalhes da forma de transmissão que não aparecem nas campanhas de "use camisinha".

Eu fiquei pensando no que faria se o resultado fosse positivo.
Para quem eu contaria.
O que eu teria que adaptar na minha vida.
E como eu faria para viver a partir daqui sem ter a liberdade de fazer sexo com alguém, por uma simples e natural vontade minha.
Como seria lidar com o fato de que talvez meus amigos passassem a sentir pena de mim.
E que eu não ia querer ser paladina de porra nenhuma, então provavelmente eu não confrontaria todo o preconceito.
Que talvez eu nunca mais me apaixonasse por ninguém.
Que nunca mais eu transaria.
Que eu ia ter, sim, que lidar com o fato de que passaria o resto da minha vida sozinha.
Mas eu viveria. Veja bem, eu viveria.


O resultado só sai segunda-feira.
Veremos o que vai ser.

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