quarta-feira

A Pós Histérica


 Para quem visse de longe, pareciam estar bastante confortáveis. Porque estavam recostados em grandes puf`s amarelos deliciosamente colocados no fundo da festa. E não concluiriam que eram namorados, pois não havia nem o afago constante dos casais apaixonados, nem a defesa de território dos casais estabelecidos, e nem o jogo de poder, enfado e birra dos casais que já passaram do tempo de terminar. São amigos – certamente seria esta a alternativa mais votada. Mas discutem um assunto pessoal – um mais atento completaria.
Sim, eles discutiam um assunto pessoal. Sim, eles não eram namorados. Não, eles não eram amigos. 

Aqueles dois seres recostados em puf's amarelos no canto da festa, habitavam um lugar ainda não nomeado que agrega o compartilhamento sem obrigações da amizade, com a intimidade física do namoro, sem, contudo, o conforto dos acordos estabelecidos do namoro e a despretensão da amizade. O terreno em que aqueles dois seres aparentemente confortáveis, recostados em puf's amarelos no fundo da festa haviam construído a sua relação, era um tipo de terreno ainda não estudado pela Geografia. Viviam uma Relação Ainda Não Classificada. Portanto não tinham parâmetros para basear os seus incômodos e desafios. Tornando mais difícil identificar problemas e prováveis soluções, e às vezes tirando o chão de debaixo dos seus pés. 
Pois não era que aqueles dois aparentemente confortáveis, recostados em puf's amarelos no canto da festa, estavam discutindo, exatamente, a relação! 
Porque todas as relações demandam discussão, inclusive as que ainda não foram classificadas. 
Demandas do 'ser gente'... C'est la vie!

Luciana, que mexia no cabelo todas as vezes que precisava organizar o pensamento, dentro de um dos seus vestidos mais bonitos, começou a discussão. Aceitando o legado sexista que parece determinar que a necessidade de sanar os incômodos parta sempre da mulher. Porque talvez o incômodo legado sexista, diga que a insatisfação é uma característica feminina... Porque a mulher, desde tempos imemoriais, procura se encaixar no molde do outro. E o comum é que se encaixe. Mesmo que fique pendurada para o lado de fora a sua perna esquerda!

Luciana começou falando assim:
- Vou embora do baile, porque não me agrada mais dançar ao som dessa música.
E como não achara tal explicação suficiente, passou longos minutos destrinchando porque o baile, a dança e a música não a agradavam.

O homem, bom falante e também excelente ouvinte, ouviu tudo. Ficando em silêncio até quando ela parava para mexer nos cabelos, tentando transformar as suas sensações em frases lógicas e de sentido ordenado. Quando ele finalmente abriu a boca, foi para dizer:
- Você desabafou...!

Não, Luciana não desabafou. 
Luciana expôs, explicitou, compartilhou, dividiu o que estava pensando, sentindo e sendo por conta daquela relação com ele. 
E mais: Luciana não desabafou. 
Luciana se reposicionou, baseada nos seus incômodos e no terreno desconhecido que ambos caminhavam. 

Não era um pedido de salvamento, embora viesse cheio de emoção. 
Se houve ruído entre emissão e recepção, Luciana atribui isso também aos legados sexistas que determinam as leituras do homem e da mulher. 
A demonstração despudorada do sentimento é tida como característica feminina. Sendo que outra característica prioritariamente feminina é a fragilidade – de modo que demonstração do sentimento e fragilidade tornam-se coisas interligadas, ambas de menor valor.  

Mas em outro momento da conversa foi ele que "desabafou":

- Você é independente demais!
-
- Como eu posso ter certeza que você gosta de mim se você não precisa de mim?

Isso fez ela se lembrar do trecho de um livro, que dizia que a ênfase na dualidade, onde o que é masculino não pode ser feminino e vice-versa, gera a ideologia da superioridade, que determina que mulher dócil é contrapartida de homem macho. Logo, Mulher Frágil é o único par possível para o Macho Forte. 

Então como uma mulher que arca consigo mesma vai validar o lugar do macho provedor? 
E afinal existem muitos lugares para necessitar e para prover, que não só o financeiro... 

Compartilhar problemas e pedir ajuda é uma coisa, usar o outro como justificativa das suas dores e alegrias, é outra. E esse jogo Luciana não joga mais. E, ela sabe, isso gera desequilíbrio, porque os papéis já estavam definidos desde muito antes dela nascer. Só que Luciana rapidamente desaprendeu a lógica binária, apresentada com mais sutileza nos tempos atuais, mas ainda tão presente, que determina o que é ser um homem e o que é ser uma mulher.

Então Luciana parou de mexer nos cabelos, sentou-se ereta no puf amarelo, olhou com carinho para o homem bonito, bom falante, excelente ouvinte, e tantas outras coisas mais, ali na sua frente, e quis explicar que os fatos dela não fazer apelos, não chorar atenção e não exigir mudanças, eram simplesmente porque só lhe era válido receber aquilo que o outro voluntariamente estivesse disposto a dar. E, assim, a única coisa indesejável que poderia acontecer, era ela não ficar feliz com o que estava recebendo. Mas quando duas pessoas estão querendo dançar músicas diferentes, é hora de encerrarem a parceria... Lamentava o fato de terem aprendido que os bailes têm que durar para sempre, sob pena de não terem sido válidos.

Luciana quis dizer que ela era frágil também; talvez muito frágil... E que todas as pessoas, independente de serem homens ou mulheres, são frágeis em alguns momentos, e que ela até achava isso bastante poético...

Luciana quis abraçá-lo, e que a sua vida se paralisasse naquele momento.

Mas ela apenas levantou do puf amarelo e se despediu. 

E viu que até a porta de saída ainda teria que atravessar a sua vida inteira.

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