Para quem visse de longe, pareciam estar bastante
confortáveis. Porque estavam recostados em grandes puf`s amarelos deliciosamente colocados no fundo da festa. E não
concluiriam que eram namorados, pois não havia nem o afago constante dos casais
apaixonados, nem a defesa de território dos casais estabelecidos, e
nem o jogo de poder, enfado e birra dos casais que já passaram do tempo de
terminar. São amigos – certamente seria esta a alternativa mais votada. Mas discutem um
assunto pessoal – um mais atento completaria.
Sim, eles discutiam um assunto
pessoal. Sim, eles não eram namorados. Não, eles não eram amigos.
Aqueles dois
seres recostados em puf's amarelos no
canto da festa, habitavam um lugar ainda não nomeado que agrega o
compartilhamento sem obrigações da amizade, com a intimidade física do namoro,
sem, contudo, o conforto dos acordos estabelecidos do namoro e a despretensão
da amizade. O terreno em que aqueles dois seres aparentemente confortáveis,
recostados em puf's amarelos no fundo
da festa haviam construído a sua relação, era um tipo de terreno ainda não
estudado pela Geografia. Viviam uma Relação Ainda Não Classificada. Portanto
não tinham parâmetros para basear os seus incômodos e desafios. Tornando mais
difícil identificar problemas e prováveis soluções, e às vezes tirando o chão
de debaixo dos seus pés.
Pois não era que aqueles dois aparentemente confortáveis,
recostados em puf's amarelos no canto
da festa, estavam discutindo, exatamente, a relação!
Porque todas as relações
demandam discussão, inclusive as que ainda não foram classificadas.
Demandas do 'ser gente'... C'est la vie!
Luciana, que mexia no
cabelo todas as vezes que precisava organizar o pensamento, dentro de um dos seus vestidos mais bonitos, começou a discussão. Aceitando o legado sexista que parece determinar que a necessidade de sanar os
incômodos parta sempre da mulher. Porque talvez o incômodo legado sexista, diga
que a insatisfação é uma característica feminina... Porque a mulher, desde
tempos imemoriais, procura se encaixar no molde do outro. E o comum é que se
encaixe. Mesmo que fique pendurada para o lado de fora a sua perna esquerda!
Luciana começou falando assim:
- Vou embora do baile, porque não me
agrada mais dançar ao som dessa música.
E como não achara tal explicação
suficiente, passou longos minutos destrinchando porque o baile, a dança e a
música não a agradavam.
O homem, bom falante e também
excelente ouvinte, ouviu tudo. Ficando em silêncio até quando ela parava para mexer nos cabelos, tentando transformar as
suas sensações em frases lógicas e de sentido ordenado. Quando ele finalmente abriu
a boca, foi para dizer:
- Você desabafou...!
Não, Luciana não desabafou.
Luciana
expôs, explicitou, compartilhou, dividiu o que estava pensando, sentindo e
sendo por conta daquela relação com ele.
E mais: Luciana não desabafou.
Luciana
se reposicionou, baseada nos seus incômodos e no terreno desconhecido que ambos
caminhavam.
Não era um pedido de salvamento, embora viesse cheio de emoção.
Se
houve ruído entre emissão e recepção, Luciana atribui isso também aos
legados sexistas que determinam as leituras do homem e da mulher.
A
demonstração despudorada do sentimento é tida como característica feminina. Sendo que outra característica prioritariamente feminina é a fragilidade – de
modo que demonstração do sentimento e fragilidade tornam-se coisas interligadas,
ambas de menor valor.
Mas em outro momento da conversa foi ele
que "desabafou":
- Você é independente demais!
-
- Como eu posso ter certeza que você
gosta de mim se você não precisa de mim?
Isso fez ela se lembrar do trecho de
um livro, que dizia que a ênfase na dualidade, onde o que é masculino não pode
ser feminino e vice-versa, gera a ideologia da superioridade, que determina que
mulher dócil é contrapartida de homem macho. Logo, Mulher Frágil é o único par
possível para o Macho Forte.
Então como uma mulher que arca consigo mesma vai
validar o lugar do macho provedor?
E afinal existem muitos lugares para necessitar e
para prover, que não só o financeiro...
Compartilhar problemas e pedir ajuda é
uma coisa, usar o outro como justificativa das suas dores e alegrias, é outra.
E esse jogo Luciana não joga mais. E, ela sabe, isso gera desequilíbrio, porque
os papéis já estavam definidos desde muito antes dela nascer. Só que Luciana
rapidamente desaprendeu a lógica binária, apresentada com mais sutileza nos
tempos atuais, mas ainda tão presente, que determina o que é ser um homem e o
que é ser uma mulher.
Então Luciana parou de mexer nos
cabelos, sentou-se ereta no puf
amarelo, olhou com carinho para o homem bonito, bom falante, excelente ouvinte,
e tantas outras coisas mais, ali na sua frente, e quis explicar que os fatos
dela não fazer apelos, não chorar atenção e não exigir mudanças, eram
simplesmente porque só lhe era válido receber aquilo que o outro voluntariamente
estivesse disposto a dar. E, assim, a única coisa indesejável que poderia
acontecer, era ela não ficar feliz com o que estava recebendo. Mas quando duas
pessoas estão querendo dançar músicas diferentes, é hora de encerrarem a
parceria... Lamentava o fato de terem aprendido que os bailes têm que durar
para sempre, sob pena de não terem sido válidos.
Luciana quis dizer que ela era
frágil também; talvez muito frágil... E que todas as pessoas, independente de
serem homens ou mulheres, são frágeis em alguns momentos, e que ela até achava
isso bastante poético...
Luciana quis abraçá-lo, e que a sua
vida se paralisasse naquele momento.
Mas ela apenas levantou do puf amarelo e se despediu.
E viu que até
a porta de saída ainda teria que atravessar a sua vida inteira.
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