Ela tinha uma brincadeira estranha, secreta e solitária - fingia ter perdido a visão.
Andando pela casa com os olhos cuidadosamente cerrados, ela apalpava os móveis e as sensações.
Era um treinamento para o desespero, pois mais intensamente que a maioria das pessoas, ela sorvia o mundo principalmente pelos olhos. Não achava um endereço se não decorasse o caminho pelas cores das casas, as fachadas dos prédios, a imagem de uma padaria à direita, uma rua torta à esquerda... E pra responder as provas da escola usava uma técnica infalível: fechava os olhos e visualizava a página do livro. Batata! Fora as memórias, que vinham em fotogramas, fora a capacidade de saber que o clips azul estava numa caixa amarela, no canto esquerdo da terceira gaveta que fica ao lado da cama.
Sim, a visão é o seu melhor sentido.
Quando leu "Ensaio sobre a cegueira" ficou semanas se sentindo impressionada, assustada, triste.
Então não, ela definitivamente não sabe lidar com a invisibilidade.
Para quem ver é algo subjetivamente essencial, não poder ser vista, machuca. Muito.
Lá no fundo.
Não poder ser vista é uma dor que retira a sua humanidade.
Ser colocada num lugar de invisibilidade sempre lhe deixou atordoada.
Precisar ser invisível gera nela uma angústia irremediável.
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