domingo

Estereótipos limitam até os auspícios das cartas de tarot...!

E foi com essa frase que Jerusa engoliu a seco a sua primeira carta, do seu primeiro jogo, com a primeira das mais bem recomendadas bruxas da sua região.

Que Lourdes é bruxa há gerações. Saudada e lavrada na religião Wicca, feiticeira de pai e mãe, atende no 7º andar de um prédio gracioso, de um bairro harmonioso, de dentro do seu apartamento bem decorado, onde moram ela, gato, filhos e terceiro marido. Ostenta tudo: um cabelo black power impecável, uns precisos olhos grandes, unhas vermelhas finamente cuidadas e o mais bonito dos sorrisos. Recebeu Jerusa de camiseta branca e um saião de algodão cru. Lhe ofereceu de imediato um abraço e um copo de água gelada com hortelã. Que o calor estava impossível mesmo!

Jerusa entrou tímida no quartinho macio e fresco onde estavam as cartas que iam descrever a sua sorte. Por um segundo sentiu que queria morar ali. Não exatamente na casa, que era bonita e imponente, mas naquele quarto macio, que parecia um carinho para aqueles seus dias doentes. Porque ninguém, nem os crédulos, recorrem aos mistérios se a vida lhes corre bem. Se tudo caminha, o melhor a fazer é deixar quieto, que não é de hoje que a gente aprende que em time que está ganhando é imprudência mexer. Mas se o fio enrola, se embola entre os nossos tornozelos, se ameaça nos fazer cair, quem julgaria uma pobre mortal de correr atrás dos desígnios do destino? Porque a alma sempre acalma quando a mente encontra alguma explicação.

- Então esta, Jerusa, é a carta central do seu jogo, é a energia que está dando o tom da sua vida neste momento. - começou a taróloga.

E então virou a carta.

Foi quando apareceu um sujeito pendurado de ponta cabeça, preso pelo pé, carregando o nome maldito de O Enforcado.

- Misericórdia! Eu 'tô é fudida mesmo! - descontrolou-se Jerusa, mesmo sem saber se naquele ambiente sagrado, era possível dizer nome feio.

Pelo visto o grau de belezura do nome não incomodava a bruxa Lourdes, ruim mesmo foi receber com tamanho pavor a pobre da carta, que culpa nenhuma tinha dos traumatismos expostos da vida de Jerusa.

- Estereótipos limitam até os auspícios das cartas de tarot...! - foi o que Loudes disse. Mais para ela mesma do que para a consulente. Que àquela cantilena ela já estava acostumada. Pois algumas cartas estão fadadas ao temor ou ao desprezo, pelo simples fato de que gente não gosta de nada que não brilhe no escuro.

Às vezes a vida estanca. E se você for uma pessoa voluntariosa demais... bem... não é muito fácil lidar com isso.

O Enforcado é não conseguir se livrar da submissão.Ou, como diriam as avós, "o que não tem remédio, remediado está!". E exige, ainda que seja à revelia, uma fé absoluta. Porque é quando os seus esforços não frutificam. Já que nem toda semente vinga. Mas, que droga, você pensa - mas por quê?! Quando O Enforcado aparece, o Universo responde com um absoluto silêncio às suas perguntas. E não adianta berrar muito... Você precisa olhar pra Deus, ou algo que o valha, e relaxar. Precisa pendurar a cordinha no seu pé direito e esperar com calma. Que todo ciclo se encerra. Que toda dinâmica se reinicia.

Lourdes sorriu, maternal. Acarinhou a mão pequena de Jerusa, e insistiu: não se assuste.

O Enforcado nos obriga a 'ficar com o que é'. A inação, o vazio, a frustração, o medo, o desespero. Fique com o que é. Quem disse que isso não é viver também? Quem disse? É um convite irrecusável para olhar a situação que lhe atormenta de outra perspectiva. Quando vivemos O Enforcado, não podemos ter pressa. Não temos qualquer controle sobre a nossa vida. Quando vivemos O Enforcado, estamos nas mãos do destino. O Enforcado é a pausa antes d'A Morte. Estamos às vésperas de uma grande mudança, de uma transformação radical onde nada será como antes.

- Jerusa, um dos motivos que encarnamos neste mundo caótico, é que precisávamos aprender a respirar profundamente.

Quando estamos vivendo O Enforcado, não somos mais o que éramos e ainda não somos o que seremos. Por isso podemos nos sentir sem referência, sem base, sem raiz - sem chão.

Todo ciclo se completa. Tenha calma. Vai ser um longo caminho. O Enforcado (a inação que é imposta), A Morte (a transformação inevitável diante de algo que morre), A Temperança (o equilíbrio que surge depois de tanto contato consigo mesmo, mas aqui ainda não há uma ação contundente), e finalmente O Diabo, trazendo de volta o furor e a paixão.

- Vai ser um longo caminho. Mas viver é tudo isso.

Jerusa segurou o choro. E nem conseguiu prestar atenção ao resto do jogo todo. Que, na verdade, tudo o que precisava mesmo saber, estava encerrado ali, naquela carta assustadora. Quando falou novamente, foi só para perguntar "como a gente passa por isso da maneira menos dolorosa possível?"

As bruxas sabem como.
E foi quando Lourdes lhe respondeu:

Sentindo.

E repetiu (repetiria quantas milhares de vezes fossem necessárias): viver é tudo isso.

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